A alegria de ver: um dom que se dilata ao infinito

Edna Maria Marturano*

Quem nunca se deslumbrou vendo o nascer do sol, nem se cativou olhando para um bebê de bem com a vida? Base da nossa adaptação e segurança, a visão é fonte de alegria que pode ser aprimorada infinitamente. A alegria de ver é um dom que se dilata ao infinito

Como? Não se sabe ao certo, mas há sinais de que esse dom tem um grande potencial de aumento. Trazemos aqui um breve registro do tema, seguindo pistas da psicologia e do evangelho.

Como vemos?

Vemos pelos olhos, certo? Não exatamente. Os olhos são como que uma janela, que a luz atravessa em direção ao córtex visual. A visão começa nos olhos, mas só se completa no cérebro.

A retina tem células que captam a luz externa e a convertem em sinais elétricos. Estes são levados ao cérebro pelo nervo ótico. No córtex visual, os sinais são integrados em imagem.

A partir daí, tomamos consciência dessa imagem e a interpretamos, isto é, damos a ela um significado. Tudo muito rápido. Ou seja, vemos de um modo que faça sentido para nós, de acordo com nossas memórias, costumes, emoções, crenças, expectativas…

Aí está uma pista para melhorar a visão: nós não vemos a realidade, e sim a nossa própria interpretação dela. É essa interpretação que constitui o ato de ver. E é ela que pode ser melhorada, no sentido de captar com mais precisão os fatos.

Também é nela que costumam aparecer miopias, cataratas e estrabismos que a cirurgia não corrige, porque são efeito de fatores subjetivos.

Um pouco de psicologia

Sim, como toda interpretação, nossa visão dos fatos poder ser míope, embaçada, ter vieses.

Duas pessoas, presenciando a mesma cena, podem perceber essa cena de modos diferentes. Cada uma verá através de lentes psicológicas tonalizadas por emoções e motivações internas, muito pessoais, de que às vezes nem se dá conta.

Esses processos estão na base do conceito de projeção.

Projeção é o mecanismo inconsciente pelo qual, como o nome indica, a pessoa projeta nos outros certos impulsos, pensamentos, emoções e desejos dela própria. Em outras palavras: a gente atribui aos outros aquilo que está em nós, mas não admitimos como nosso.

Assim, muitas vezes, vemos más intenções onde elas não existem, enxergamos falhas que são apenas projeção da nossa mente. Por exemplo, alguém que tem muita raiva reprimida pode enxergar hostilidade nos outros. Outro exemplo: alguém com baixa autoestima tende a ver, nas atitudes dos outros, sinais de desprezo à sua pessoa.

O mecanismo de projeção é causa de muitos mal-entendidos, que prejudicam a convivência, gerando conflitos. Por isso, o conceito de projeção é muito útil em psicoterapia. Ajudando o paciente a enxergar em si mesmo esse mecanismo, o psicólogo facilita a melhora nos relacionamentos.

E facilita também o autoconhecimento.

Essa é outra pista para o aprimoramento da visão: pelo ato de sempre olhar para dentro de nós mesmos, podemos fazer o diagnóstico das falhas de interpretação que embaçam ou distorcem a nossa visão da realidade.

Jesus e a visão humana

Sábio psicólogo, Jesus identificou as duas pistas em certa metáfora que ficou famosa, aquela do argueiro e da trave no olho.

O argueiro e a trave – Primeiro, ele apontou o viés negativo das nossas percepções: “Por que vês o argueiro no olho do teu irmão e não enxergas a trave diante do teu?”[1] Depois, prescreveu: “…tira primeiro a trave do teu olho e depois, então, vê como poderás tirar o argueiro do olho do teu irmão.”[2]

Traduzindo: “olhe para dentro de você mesmo, descubra e corrija os fatores internos que estão prejudicando sua visão”.

O Mestre lembrava, assim, noções simples de visão clara.

Para além da visão clara – Mas ele não ficou nisso, foi além quando disse: “Bem-aventurados os que têm o coração puro, porque verão a Deus.”[3]

Ao afirmar que os puros de coração verão a Deus, Jesus aludia de novo ao processo pelo qual interpretamos a realidade através das lentes dos sentimentos que alimentamos no nosso íntimo.

Quanto mais cristalina a lente, mais limpa a visão.

E, segundo as palavras de Jesus, quanto mais puros os sentimentos, maior a capacidade de enxergar a presença de Deus nas pessoas, nas situações e nos acontecimentos.

Afinal, Deus está em toda parte!

É como naquele antigo passatempo chamado “Onde está Wally?”. Deus está ali, falta procurar.

Essa é uma terceira pista importante para melhorar a visão: a busca ativa da “boa parte” das pessoas, das situações e dos acontecimentos.

Por que essa busca ativa melhora a visão? Porque cada vez que você descobre algo de bom na realidade que está vivendo, você dilata e clareia seus horizontes.

O essencial é invisível para os olhos

O ponto de vista de Jesus sobre o olhar humano é que os olhos estão no corpo, mas quem enxerga é a alma. E o coração simboliza os sentimentos da alma.

Tendo ele mesmo um coração puro, Jesus buscava e achava as sementes do bem em toda parte.

Vejamos alguns exemplos[4]:

Em Zaqueu, envolvido em apropriação indébita, Jesus percebeu o missionário do progresso desviado de sua missão e lhe deu apoio para o retorno aos deveres.   

Em Maria Madalena, obsidiada, viu tanto bem em potencial que a resgatou a ponto de fazer dela a mensageira da ressurreição.

Em Pedro, que o negou, previu a força do arrependimento a sustentar o discípulo até o fim do seu apostolado.

E em Paulo, perseguidor cruel, enxergou a alma leal e corajosa que levaria seus ensinos aos confins do império romano.

Em resumo

É possível dilatar ao infinito nossa visão, como faculdade da alma. Três pistas vão ajudar nesse projeto:

  • a visão humana é uma interpretação da realidade
  • olhar para dentro de si é o primeiro passo para o reconhecimento e a correção dos vieses com que costumamos distorcer os fatos sem perceber
  • a busca ativa pelo lado bom da realidade que nos cerca amplia ao infinito os horizontes da visão da alma

Que o olhar de Jesus nos inspire nessa busca.


[1] Lucas, 6:41

[2] Lucas, 6:42

[3] Mateus 5:8

[4] Emmanuel. O olhar de Jesus. Comentários ao Evangelho segundo Mateus. Psicografia F. C. Xavier. Ed. FEB