Saulo Simon Borges*
Em 2014 foi promulgada uma lei no estado de São Paulo que proibia a fabricação e comercialização de armas de brinquedo por todo o território do estado. Com isso, a lei teve sua constitucionalidade questionada no Supremo Tribunal Federal em razão de uma tecnicidade jurídica sobre quem pode legislar sobre esse tema. Mas sobre qual tema?
De um lado, o Governador do Estado de São Paulo alegava ser uma temática a respeito da fabricação de armas e direito criminal; por outro lado, a Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo dizia ser, na verdade, uma temática de direito do consumidor e proteção às crianças e adolescentes.
Fazemos aqui novo questionamento pensando nessa última argumentação: a proibição de um brinquedo pode proteger crianças e adolescentes? Para responder à questão, seria importante compreender primeiro a utilidade de um brinquedo para uma criança. Parece ser uma resposta lógica: para brincar, causar divertimento. Evidentemente que sim, mas não apenas. Quem já aprendeu noções de quantidade com Banco Imobiliário; controlar emoções com o truco ou então descobriu novos bichos com uma brincadeira no quintal de casa, entre outros exemplos, já poderia ter percebido que a brincadeira é uma forma de aprendizagem. Aprendemos brincando.
A noção não é intuitiva por já ter existido um forte movimento que separou artificialmente uma coisa da outra: tem hora para aprender e hora para brincar. Essa é uma visão antiquada e limitante das práticas educativas. Vigotski, um dos grandes teóricos da psicologia do desenvolvimento e aprendizagem, em seu livro “A formação social da mente” dedica uma seção inteira para explicar a relação do brinquedo com a aprendizagem. Demonstra-se como a criança, em busca da diversão, aprende regras e convenções sociais para sustentar sua fantasia.

Por exemplo, ao brincar de faz de conta, coloca-se na posição de mãe de uma boneca e precisa executar ações, palavras e posturas que são socialmente esperadas de uma mãe, permitindo que seu mundo de fantasia seja criado. Progressivamente há um processo psicológico de internalização dessas regras, ou seja, elas vão se tornando parte, não mais da brincadeira, mas das obrigações que são esperadas daquela criança enquanto indivíduo de uma sociedade.
O mesmo processo acontece quando a criança “brinca” com uma arma. Aprende, em primeiro lugar, que é divertido. E aprende atirando em outras pessoas e animais. Depois, esforça-se para apresentar uma postura que lhe possibilite ser socialmente reconhecida como um indivíduo que porta uma arma: um criminoso sedento por sangue, atirador dominado pela raiva e agressividade, um caçador que não poupa nada e nem ninguém, etc. Dessa maneira, a criança vai criando um repertório de comportamentos sociais dominados por respostas agressivas e que naturalizam a violência. A criança não sabe dialogar sobre as emoções de indignação e revolta, mas sabe “dar um tiro na cara daquele ali”.
O que parece ser exagerado e caricatural é escancarado em nossas vidas quando presenciamos – ou somos vítimas de – lamentáveis episódios de jovens atiradores em escolas, crianças envolvidas com o crime, etc. Então, reiniciamos o grande debate sobre o que se fazer: bunkers em escolas, aumentar o policiamento, penas mais rigorosas, aulas de defesa pessoal, mas dificilmente chega-se à sugestão de tirar as armas da mão das crianças.
Armas foram criadas para matar e eventualmente são utilizadas em seu sentido simbólico – de ameaça como forma de se afastar agressões. É uma lamentável solução “acochambrada” a que somos obrigados a recorrer em uma sociedade tão violenta como a nossa. A arma é lamentável, sempre lamentável, e não deveria ser motivo de risadas. Seu uso é para adultos incumbidos da defesa das comunidades preferencialmente com muita pericia em seu manejo e necessariamente com a saúde mental em dia, jamais para crianças.
Por fim, como resultado da celeuma criada pela lei paulista, o STF decidiu, ao final de 2022, pela constitucionalidade da Lei do Estado de São Paulo que proíbe a fabricação e comercialização de armas de brinquedo. Ou seja, para o Tribunal Constitucional, é, sim, uma questão que diz respeito à proteção de crianças e adolescentes.
* Saulo Simon Borges é Diretor do Instituto Espírita Paulo de Tarso com as funções de Presidente, 2021, mestre e graduado pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo – USP.
- Cursou Sistema Interamericano de Direitos Humanos pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA – Washington D.C., 2019;
- Curso Políticas Públicas em Direitos Humanos pelo Instituto de Políticas Públicas em Direitos Humanos do MERCOSUL – Buenos Aires, 2020;
- Habilitação em Letras – Português pela Universidade do Norte do Paraná, 2019-2020;
- Intercâmbio realizado na Université Lumière Lyon 2 – 2016;
Membro da comissão de revisão do Projeto Político Pedagógico da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto, 2013-2016; - Membro da Congregação da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto, 2017-2018 e 2021-atual;
- Membro do Programa de Educação Tutorial (PET-Direitos), 2013-2014 e bolsista do Programa Aprender com Cultura e Extensão, 2013-2014;
- Gerente de Educação Integral da Secretaria de Educação, Juventude e Esportes do Estado do Tocantins, 2019-2020;
- Analista de Projetos pelo Instituto Sonho Grande alocado na Equipe de Implantação das Escolas de Ensino Médio de Tempo Integral da Secretaria de Educação, Juventude e Esportes do Estado do Tocantins, 2018-2019;
- Alumni Vetor Brasil, 2019;
- Extensão em “Gerenciamento de projetos para resultados – PM4R” ministrado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID.
- Professor de gramática do Cursinho Popular da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto, 2016
Fontes:
Lei Estadual n° 15.301, de 12 de janeiro de 2014: https://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/lei/2014/lei-15301-12.01.2014.html#:~:text=Disp%C3%B5e%20sobre%20a%20proibi%C3%A7%C3%A3o%20de,Paulo%20e%20d%C3%A1%20outras%20provid%C3%AAncias
Acesso ao inteiro teor do julgamento do STF (ADI 5126):
https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4577991
VIGOTISK, Lev Semyonovitch. A formação social da mente. 7. Ed. Martins Fontes: São Paulo, 2017.